Assim como países antidemocráticos, o Brasil segue com números preocupantes nas estatísticas sobre liberdade de imprensa. Em meio a pandemia, o “silenciamento” dos meios de comunicação pode significar não apenas o risco à vida de seus profissionais, como também daqueles que não tem acesso à informações adequadas para se proteger do novo coronavírus
GIOVANNA HEMERLY*
gihe296@gmail.com
Mais de dois séculos após a criação da primeira lei contra repressão aos veículos de comunicação na Suécia, o exercício da liberdade de imprensa em diversos países no mundo ainda é um sonho distante. Segundo o Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020, realizado pela ong internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF), dos 180 países analisados, 62 encontram-se em situação sensível para a imprensa, enquanto 46 estão em situação difícil e 22 grave. Além disso, de janeiro até abril, foram comprovados ao menos dez assassinatos de jornalistas por conta do exercício da profissão e prisão de 231 jornalistas e 14 colaboradores. A maioria dos assassinatos e das prisões que ocorreram este ano foram em países ditatoriais do Oriente Médio, da Ásia e em países da América Latina.
No entanto, diante da atual pandemia da COVID-19, a luta pela liberdade da imprensa constitui-se também como uma luta contra a própria proliferação do novo coronavírus, já que muitos governos estão omitindo dados, censurando veículos de imprensa e divulgando informações falsas ou distorcidas acerca da doença. É, aliás, devido ao aumento nos números de notícias falsas, que a Organização Mundial da Saúde declarou a necessidade de combater também a “infodemia”, já que a desinformação está se espalhando tanto quanto o novo coronavírus. A RSF relatou haver inclusive correlação entre repressão da imprensa e a situação dos países na pandemia.
A RSF também declarou que o momento atual é decisivo para o jornalismo em todo o mundo, já que crises que têm afetado o futuro do jornalismo, como as crises geopolíticas, tecnológicas, democráticas, de confiança e econômicas. “A epidemia de coronavírus explicita os fatores negativos para o direito a informações confiáveis, sendo ela própria um fator multiplicador. O que acontecerá com a liberdade, o pluralismo e a confiabilidade das informações até o ano 2030? A resposta a essa pergunta está sendo construída hoje”, declarou o secretário geral da RSF, Christophe Deloire.
Coreia do Norte - Em última posição no ranking do RSF de 180 países, a Coreia do Norte encontra-se em situação grave para a liberdade de imprensa. O território vive em regime totalitário, desde 1948, e é considerado hoje um dos lugares mais fechados do mundo. Por isso, pouco se sabe de fato sobre o que acontece no país, mas há relatos sobre frequentes violações de direitos humanos, que acontecem não só contra profissionais da comunicação. Até mesmo se um cidadão comum tentar acessar informações de mídias estrangeiras, pode ser condenado a trabalho forçado em campo de concentração.
O único canal autorizado a difundir informações é Agência Central de Notícias da Coreia (KCNA, da sigla em inglês), que atua sob controle total do governo. E como as poucas notícias que se tem aqui fora sobre o que ocorre no país são dessa agência, não é possível saber quais informações são de fato verdadeiras e quais são produzidas pelo próprio regime. Isso se complica diante da pandemia.
Apesar do histórico de omissão da ditadura ao que ocorre no exterior, o governo norte-coreano não negou a existência da pandemia e até tem seguido recomendações da Organização Mundial da Saúde para evitar contágios. Contudo, a real situação do novo coronavírus no país ainda é incerto e gera dúvidas, já que, até o momento, as autoridades afirmam não haver registros de pessoas infectadas pela doença. A declaração pode ser verdadeira, levando em conta o caráter fechado e de alto controle do país. Só que há possibilidade da circulação clandestina de pessoas entre a Coreia do Norte e a China, que segundo relatos vem ocorrendo há anos. Essa poderia ser uma porta de entrada para a COVID-19.
Diante do sumiço de quase vinte dias do líder norte-coreano Kim Jong-un, começaram a surgir especulações sobre o estado de saúde do ditador. Desde sua ausência na comemoração mais importante da Coreia do Norte, o aniversário do fundador do regime ditatorial e seu avô, Kim Il-Sung, em 15 de abril, haviam rumores sobre a possibilidade de doença grave ou até mesmo falecimento. No entanto, esta semana foram divulgadas pela KCNA as primeiras imagens de Kim Jong-un em aparição pública durante a inauguração de uma fábrica de fertilizantes.
Turcomenistão - Assim como a Coreia do Norte, o Turcomenistão, que ocupa o penúltimo lugar do ranking da RSF, é também considerado um dos países mais fechados do mundo. Os meios de comunicação do país são altamente controlados pelo Estado, que tem como líder o ditador Gurbanguly Berdimuhamedow, chamado pela população de “Pai Protetor”. Um dos poucos canais de informação independente do país, a Radio Free Europe (RFE), teve vários de seus profissionais ameaçados, torturados e levados para “tratamento psiquiátrico” compulsório.
Porém, diferente do regime ditatorial do país asiático, o governo do Turcomenistão tem adotado medidas para “esconder” a pandemia no território, ocultando informações e dados sobre a real situação, além de incentivar a população a manter hábitos que ignoram a cartilha de recomendação da Organização Mundial da Saúde para quarentena.
Devido a isso, o pesquisador de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas, Oliver Stuenkel coloca o Turcomenistão no grupo que ele intitula de “Aliança dos Avestruzes”, países com governo que ignoram a real dimensão da pandemia, desconsiderando as políticas de distanciamento social, além de minimizar ou omitir dados sobre a doença no país. Além do Turcomenistão, a Bielo-Rússia, Nicarágua e Brasil também estão incluídos no grupo.
Em março, Berdimuhamedow proibiu o uso de termos como “coronavírus” e “COVID-19”, por qualquer cidadão ou veículo de imprensa. Em abril, o ditador ordenou a retomada do campeonato nacional de futebol e a realização de um passeio coletivo de bicicleta para celebrar o Dia Mundial da Saúde.
Outra situação preocupante é que territórios que fazem fronteira com o Turcomenistão estão apresentando elevados índices de contaminação. O Irã, por exemplo, já contabiliza até o momento 97.424 infectados e 6.203 óbitos por coronavírus. Já o Afeganistão está alcançado rapidamente recordes diários de novos casos desde abril. Já são registrados 2.704 infectados e 85 mortes. Contudo, há possibilidade que o número seja ainda maior por conta da falta de testes e assistência médica precarizada diante dos longos anos de guerra civil.
China - O país que foi o primeiro epicentro da pandemia, inicialmente adotou estratégias para ocultar a doença através da censura e omissão de dados. Após o aumento descontrolado do número de casos, o governo ditatorial chinês teve que anunciar não só a situação real do país para seus cidadãos, como também para a comunidade internacional sobre o novo coronavírus.
Contudo, a RSF afirma que o controle ditatorial sobre os meios de comunicação foram intensificados com a pandemia para que não houvesse qualquer crítica à gestão do ditador chinês Xi Jinping, inserido pela ong na lista dos “Predadores da Liberdade de Imprensa”, ao lado de outros líderes autoritários, como o da Coreia do Norte e do Turcomenistão. A ong também afirma haver pelo menos três jornalistas e três comentaristas políticos presos por declarações sobre a doença que não agradaram o governo, além de dezesseis correspondentes estrangeiros expulsos.
O pronunciamento oficial do governo chinês sobre a COVID-19 só aconteceu em 20 de janeiro, mais de um mês depois dos primeiros casos registrados da doença na cidade de Wuhan. Nesta época o país já contabilizava 3 mil pessoas infectadas. Ainda em janeiro o governo chinês “advertia” oito médicos por “espalhar boatos”, entre eles estava o médico oftalmologista Li Wenliang, um dos primeiros a perceber a gravidade do surto e tentar alertar as autoridades. Wenliang faleceu início de fevereiro em decorrência do novo coronavírus.
A morte do médico, considerado um herói nacional, causou uma onda de protestos que obrigou o governo chinês a “reconhecer o erro”. O erro da China também foi apontado por estudo feito pela Universidade de Southampton. Segundo pesquisadores da universidade britânica, caso as intervenções para contenção do surto tivessem sido tomadas entre uma ou três semanas antes do dia 20 de janeiro, os casos poderiam ter sido reduzidos entre 66% e 95%.
A China ocupa atualmente a 177ª posição no ranking mundial de liberdade de imprensa. Segundo o Repórteres Sem Fronteiras, mais de 100 jornalistas e blogueiros estão presos no país em condições precárias. Entre os prisioneiros estavam o blogueiro e poeta Yang Tongyan e o vencedor do prêmio nobel da paz de 2017, Liu Xiaobo, que faleceram devido a piora do câncer não tratado durante o período que permaneceram na prisão.
Brasil - Ocupando este ano a 107ª posição no ranking, duas posições abaixo do ano passado e cinco abaixo do ano retrasado, o país tinha como principais ameaças o monopólio dos grandes veículos de imprensa e violação de direitos contra jornalistas que investigam tráficos, milícias e corrupção política. Contudo, diante da pandemia, os pronunciamentos e ações de autoridades políticas, como o presidente da república Jair Bolsonaro, tem não só alimentado o crescente discurso de ódio e violação de direitos contra jornalistas e opositores do governo, como também está fortalecendo a “pandemia de desinformação”, acarretando um maior número de contágios, e por consequência, um aumento do número de mortes.
Indo na contra-mão dos países que estão conseguindo reduzir as taxas de óbitos e de infectados, e contrariando recomendações da OMS, o governo de Jair Bolsonaro tem buscado adotar medidas para por fim a quarentena, além de priorizar investimentos na abertura e impulsionamento do comércio em lugar de investir nas estratégias de contenção da doença. Segundo o presidente, a pandemia da COVID-19, declarada oficialmente pela OMS no início de março, é “mais fantasia” da grande mídia do que uma crise real. Não raro, o presidente costuma proferir em suas redes sociais ataques e ofensas à jornalistas em exercício da profissão.
Fake News - Intitulado de “gabinete do ódio”, o núcleo do governo Bolsonaro responsável pela comunicação é apontado como uma central para a veiculação de notícias falsas, informações deturpadas e ataques à opositores. Apontado pela Polícia Federal como o principal articulador do gabinete, o vereador do Rio de Janeiro e filho do presidente da república, Carlos Bolsonaro, enfrenta investigação policial no Supremo Tribunal Federal (STF). O outro filho do presidente e deputado federal, Eduardo Bolsonaro, também é apontado como integrante do núcleo, junto com outros parlamentares ligados ao governo.
Investiga-se agora se a exoneração de Maurício Valeixo, ex-diretor da Polícia Federal, nomeado na época pelo ex-ministro Sérgio Moro, foi feita com intenção de interferir nas investigações do STF. Prints das mensagens trocadas com o presidente, divulgadas por Moro após deixar o ministério e se desvincular ao governo Bolsonaro, reforçaram as denúncias.
Os filhos do presidente e seus parlamentares também enfrentam no Congresso, desde 2019, a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, a chamada de “CPMI da Fake News”, que investiga a participação destes em práticas criminosas e antidemocráticas durante a campanha eleitoral de 2018, que elegeu o atual presidente.
Ao lado de líderes autoritários, Jair Bolsonaro foi citado na campanha de 2019 em favor da imprensa independente dos Repórteres Sem Fronteiras, que ressalta a importância de uma imprensa independente e sem favores. Confira:
Confira também o vídeo da Abraji sobre a violência contra jornalistas na fronteira do país:
*Estudante do curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura