Em atividade há sete anos, o projeto de extensão reúne discentes e docentes da Universidade Federal da Bahia para desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão a partir do universo da Música Popular Brasileira
GIOVANNA HEMERLY*
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Lirismo, harmonia e críticas a realidade sociopolítica brasileira. Foi neste ritmo que as noites do Teatro Sesc-Senac Pelourinho foram marcadas pelas apresentações de discentes e docentes da Universidade Federal da Bahia, interpretando as canções de um dos maiores ícone da Música Popular Brasileira, no espetáculo musical “Gonzaguinha: O que é, o que é”, promovido pela quinta edição do Projeto CANTAR, vinculado ao Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC).
Assim como em edições anteriores, o projeto de extensão criado em 2012 pelo maestro e professor Ângelo Castro, trouxe para o público um repertório rico em canções que marcaram a MPB e fizeram história no país, cantadas agora na voz de professores e alunos oriundos dos mais diversos cursos da UFBA. “Seu principal objetivo é aliar repertório, interpretação e performance no palco. Envolve conhecimentos sobre a canção brasileira, seus autores e os seus principais intérpretes”, explicou o maestro Castro, que também coordena o projeto.
Conhecer mais os trabalhos de artistas nacionais, enquanto se trabalha a própria aptidão musical. O professor adjunto do IHAC, Marcelo Dourado, que participa das atividades do CANTAR desde 2018, na parte de percussão e canto, conta que estar no projeto de extensão é ter a chance de passar por uma vivência única. “A experiência é fantástica. O projeto resgata a contribuição de importantes compositores da música brasileira, além de possibilitar o desenvolvimento de habilidades tais como: memória, afinação, ritmo e dicção”, afirmou.
É através desta experiência inclusive que muitos integrantes tiveram a oportunidade de participar pela primeira vez de um espetáculo musical em todas as suas etapas, desde a produção até a apresentação no palco. É o caso da estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Saúde, Louyze Lopes. “Vi no projeto uma oportunidade de me conhecer mais, de ter mais contato com esse universo da música e também de estar cercada de pessoas que evoluíram comigo”, contou a discente sobre sua participação no projeto, surgido a partir do seu interesse pela música e também pelo desafio da experiência de cantar em um espetáculo.
Para Louyze, esta possibilidade proporcionada pelo projeto de construir vínculo com os demais participantes, enquanto trabalhava seu desenvolvimento musical, foi uma experiência bastante marcante e enriquecedora. “Errei várias vezes, testamos várias formas de cantar e superamos tudo isso para no final estar tudo bem feito. Nós viramos uma família”, disse a estudante. Já Cristiane Leal, também do BI em Saúde, acrescenta: “Esse projeto alimenta a alma, possibilita troca de energia, afeto, rompimento de barreiras e preconceitos consigo mesmo. Além disso, tem como idealizador uma pessoa com olhar sensível para o outro, de forma que encontra potencialidades onde jamais se pensou encontrar”.
Homenagem – A doutora em Artes Cênicas e responsável pela direção artística do Projeto CANTAR, Elisa Mendes, explica que há o desejo de que projeto consiga integrar cada vez mais os docentes e discentes de diferentes cursos, até os técnicos administrativos da própria UFBA, ao mesmo tempo em que explora as possibilidades de se trabalhar a diversidade das linguagens artísticas na produção e realização do espetáculo. “Eu gostaria de que outros alunos fizessem parte, que outros professores se encorajassem a participar também, e que a universidade cada vez mais possa reconhecer o quanto esse projeto já está consolidado e como ele precisa ampliar as parcerias”, declarou a professora.
Mas escolher o artista homenageado não é tarefa fácil. Elisa Mendes, que já trabalha com o projeto há cinco anos, contou que a decisão é sempre difícil diante da gama de grandes cantores e compositores que integram o vasto repertório da Música Popular Brasileira (MPB). No entanto, após o sucesso da edição em homenagem a Luiz Gonzaga, realizada no ano do seu centenário, houve grande interesse em trabalhar também a obra de seu filho Gonzaguinha. “Nós já atuamos trabalhando a partir do repertório de Gonzagão, e Gonzaguinha foi uma escolha também que já estava, digamos, na ‘lista dos mais’, porque é um grande músico, mas principalmente um grande letrista”, afirmou a diretora artística.
O coordenador do projeto Ângelo Castro ressalta que no processo da escolha é muito importante levar em conta a possibilidade dos inscritos realizarem um mergulho na fortuna criativa do artista escolhido. Por isso, a prioridade é sempre de compositores com repertório que exijam dos participantes concentração e dedicação. “A escolha do Gonzaguinha passa por aí: criatividade, diversidade de estilos, complexidade melódica e harmônica, interesse interpretativo. Ou seja, os docentes artistas precisam entrar no mundo artístico do compositor”.
Dono de canções marcantes, que revelam tanto seu lado romântico, quando seu lado indagador e crítico, Gonzaguinha é considerado até os dias de hoje um compositor ímpar. Suas composições, emblemáticas, passeiam por uma diversidade de gêneros e temas que retratam desde o lado mais belo da vida até os problemas sociais do cotidiano de um morador da periferia. Assim como seu pai, Luíz Gonzaga, rei do Baião, o cantor tornou-se um ícone tanto por trazer em suas letras uma imagem social do Brasil que contrapunha-se ao projeto de brasilidade sustentado na época, quanto pelo em suas obras.
“É uma obra muito ácida, mas também leve quando tem que ser. Eu amei poder conhecer mais de Gonzaguinha a partir do projeto”, contou a estudante de Letras, Lara Nunes. A discente, que integra a banda KalunduH, conta que teve contato desde cedo com as canções de Gonzaguinha. Contudo, o mergulho na obra do artista feito, durante sua participação no Projeto CANTAR, possibilitou uma experiência única. “Essa homenagem foi espetacular porque Gonzaguinha é espetacular. Cada música, cantada por cada um de nós, representava a gente e tocava a todos nós porque era possível sentir o outro através das músicas dele”, disse.
Além disso, diante dos problemas no ambiente universitário que afetam o bem-estar da comunidade acadêmica, se envolver com o projeto funcionou como uma terapia para a estudante. “Você ter um espaço para libertar isso através da música é muito incrível, porque funciona como cura ter aquele final da tarde para ensaiar, cantar, encontrar aquelas pessoas que você gosta e de saber que se está construindo um espetáculo bacana”, relatou Lara.
Música na universidade – Desde o início, Gonzaguinha acreditava no poder da música como agente de transformação e na atuação política do artista. Por isso não se intimidava na hora de inserir sua visão crítica nas composições, a fim de denunciar e alertar o povo brasileiro para os problemas sociais do país. Este motivo, inclusive, levou o carioca a ter que se explicar por diversas vezes para o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), órgão repressor da ditadura militar responsável por censurar produções artísticas e intelectuais até sua extinção em 1983.
No entanto, vale também ressaltar que foi ainda enquanto universitário que Gonzaguinha começou a dar os primeiros passos em sua carreira como artista. Em conjunto com outros nomes que viriam se tornar estrelas da MPB, como Ivan Lins e Aldir Blanc, o carioca fundou, em 1960, o Movimento Artístico Universitário (MAU). Além disso, ganhou destaque no Festival Universitário da Canção Popular do Rio de Janeiro, promovido na época pela TV Tupi, chegando a ganhar primeiro lugar, em 1969, com a apresentação de “O trem”, música que já revelava o lado lírico e crítico do artista.
“Ele morou muito tempo em São Carlos, no Rio de Janeiro, e isso é pra mim é uma identificação muito grande porque é da terra, do lugar de onde eu vim”, contou a professora substituta do BI de humanidades, Priscila Almeida, que também é carioca, assim como o artista. A docente que já mora há cinco anos na Bahia, considera essencial atividades de extensão da UFBA que integre públicos diversos, tanto estudantes de áreas distintas, quanto a própria relação da comunidade acadêmica com o público externo. “Você tem pesquisa e ensino, e a extensão vem como o retorno, para que se possa levar todo o conhecimento que é gerado nessa relação universidade e sociedade, mas num projeto que acolhe pessoas de outros lugares, outros cursos”.
O ator e estudante do BI de Artes, Heraldo de Deus, também enxerga no Projeto Cantar a chance visibilizar o papel social das instituições públicas de ensino superior. “A universidade tem sofrido muito nesses períodos tenebrosos, e projetos como esse vem para poder mostrar assim ‘olha a gente tem um caminho por aqui, vale a pena investir nisso que a gente faz”. Desta forma, para ele, o espetáculo revela a importância de mostrar o que está sendo produzido nas universidades, especialmente diante do atual contexto de defesa do ensino público, gratuito e de qualidade nas universidades. “A maior mensagem que a gente pode deixar hoje é viver e não ter vergonha de ser feliz”, completou Heraldo.
Segundo Lara Nunes, a escolha de realizar o espetáculo no Teatro Sesc-Senac Pelourinho, localizado no Centro Histórico de Salvador, região popular da cidade, contribuiu para que o projeto atingisse um público que muitas vezes não tem dimensão do que a universidade pode proporcionar, trazendo a aproximação essencial do ambiente acadêmico ao público externo. “No contexto que a gente está vivendo agora, de uma tentativa de sucateamento das universidades, é muito importante ver o teatro lotado nos quatro dias, das pessoas vendo o que se produz na universidade. Assim, as pessoas conseguem entender um pouquinho da importância do espaço universitário não só para quem está lá dentro, mas para quem não está também”, reiterou.
Perspectivas para o futuro - Na próxima edição, que se inicia em março 2020, o Projeto CANTAR vai pesquisar e interpretar o Samba da Bahia, começando pelo ano de 1930 até 1980. “Isso envolve muita pesquisa e um trabalho com os mestres do samba ainda atuantes, como Walmir Lima e outros. Faremos o show de estreia no dia 2 de dezembro de 2020”, revelou Ângelo Castro.
Segundo o coordenador, além dar continuidade ao estudo da canção brasileira e imersão sobre os autores estudados, o projeto de extensão ainda pretende iniciar um processo de inclusão de membros da comunidade, além de um piloto com uma ONG local.
*Estudante do curso de Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA e repórter da Agência de Notícias em CT&I – Ciência e Cultura