Com 477 quilômetros de extensão que abrange dois eixos - leste e norte, o Projeto de Integração do Rio São Francisco promete levar água a cerca de 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba
POR GEORGE LÔLA*
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A primeira vez em que se falou na transposição do Rio São Francisco data dos tempos de Império, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, propôs a construção de um sistema que levasse a água do rio São Francisco para o rio Jaguaribe, no Ceará, como estratégia para combater a seca. Desde então, a transposição ganhou força durante o governo Luís Inácio Lula da Silva, com base em projeto elaborado no governo de Fernando Henrique Cardoso.
Idealizado como a maior obra de infraestrutura hídrica do país, o Projeto de Integração do Rio São Francisco possui 477 quilômetros de extensão em dois eixos, leste e norte, e promete levar água a cerca de 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. A primeira etapa – o eixo leste, que vai conduzir a água ao semiárido paraibano, já foi concluída. A previsão é de que o eixo norte esteja pronto até o segundo semestre deste ano.
Apesar das denúncias de corrupção que envolvem a obra, pouco se discute a respeito de seus impactos ambientais. O Relatório de Impacto Ambiental (RIMA), do Ministério da Integração Nacional, comprovou que o empreendimento pode trazer consequências como a redução da cobertura vegetal, a extinção de algumas espécies raras e ameaçadas e a alteração na comunidade vegetal.
Para executar um projeto dessa dimensão, que envolve uma série de impactos ambientais e socioeconômicos, é necessário caracterizar os efeitos da obra no bioma caatinga, já que a maior parte do empreendimento ocupa áreas predominantes dessa vegetação. O Ministério da Integração Nacional investiu em 38 programas que pesquisam os aspectos relacionados à transposição, que são desenvolvidos por pesquisadores de diversas instituições. Dois deles são: o Programa de Conservação de Fauna e Flora – PBA 23 e o Programa de Recuperação de Áreas Degradadas – PBA 09, executados pelo Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (NEMA) na Universidade Federal do Vale do São Francisco, em Petrolina (PE).
Para monitorar a cobertura, composição e diversidade vegetal nas áreas atingidas pela obra, o NEMA realiza uma série de ações, que vão desde o resgate de plantas vivas da área do projeto à doação de sementes para recomposição ambiental. De acordo com Renato Garcia Rodrigues, biólogo e coordenador do NEMA, já são oito anos de trabalho em uma área de 6 milhões de hectares, que cobre, prioritariamente, os municípios próximos aos canais da transposição.
Uma das ações de monitoramento é o inventário florístico, criado para identificar as espécies de plantas que estão no local. As sementes das plantas coletadas compõem um banco de sementes que, posteriormente, podem ser doadas para viveiristas e pesquisadores. Segundo Rodrigues, são coletadas plantas de valor econômico, de uso para recuperação de áreas degradadas, espécies raras e ameaçadas de extinção. Em seguida, essas plantas são recolocadas nos locais onde a obra já foi concluída.
Áreas Degradadas – À medida que a obra avança para as áreas dos eixos norte e leste, é possível identificar o aumento de áreas degradadas, que sofreram, em algum grau, impactos em sua integridade, sejam elas de natureza física, química ou biológica. Tem-se notado, também, o aumento de processos erosivos e de sedimentos oriundos das escavações e movimentações de terra.
O Programa de Recuperação de Áreas Degradadas (PBA 09), também executado pelo NEMA, foi desenvolvido com a finalidade de evitar a expansão do processo de erosão e o comprometimento dos canais de água, assim como possibilitar a retomada do uso original ou alternativo das áreas onde haverá intervenção construtiva. O PBA prevê a recomposição da paisagem original tanto quanto possível, considerando as características do bioma caatinga.
O NEMA monitora a diversidade vegetal, observando se a construção da obra está afetando a comunidade de plantas como um todo e se o desmatamento está mudando a dinâmica populacional. Já foram desenvolvidos modelos de recuperação por pesquisadores do núcleo. “Temos duas áreas de teste onde aplicamos esses modelos. A ideia é que sejam projetos de baixo custo, baixa manutenção, e que possam ser replicáveis, funcionando em todas as condições”, explica Roodrigues, que coordena os projetos de pesquisa junto com bolsistas de iniciação e de mestrado.
De acordo com Rodrigues, já estão sendo recuperados 196 hectares na área da transposição desde 2016. Até 2018, esse valor pode ser duplicado até alcançar a extensão inteira da obra em 2020. No entanto, algumas dificuldades já foram constatadas pelos pesquisadores. Para evitar a erosão, são plantadas espécies herbáceas para revegetar a área, mas o solo está amplamente degradado e a falta de chuvas tem prejudicado as atividades de recuperação.
Conservação da Fauna – Outra atividade prevista pelo PBA-23 é a conservação da fauna. O Ministério da Integração prevê como impactos negativos do empreendimento alterações na biota aquática e terrestre, fragmentação da vegetação nativa, particularmente das caatingas arbórea e arbustiva-densa e aumento da pressão antrópica sobre a biota com a expansão da fronteira agrícola e urbana devido ao aumento da disponibilidade de água.
O Centro de Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna), da Universidade Federal do Vale do São Francisco em Petrolina, é responsável por sete dos subprogramas do PBA-23, todos relacionados à fauna da Caatinga. Segundo o PBA-23, a seleção dos grupos de animais a serem monitorados se baseou em critérios como alta potencialidade como elemento impactado, importância na cadeia alimentar, boa sensibilidade como indicador de qualidade ambiental e relação com o empreendimento.
Coordenador do Cemafauna, o professor Luiz Pereira destaca as atividades de resgate e monitoramento de espécies de animais raras e ameaçadas nas áreas do Projeto de Integração. “Estamos atuando diretamente com as empresas que fazem a supressão da vegetação. Observamos se tem animais nessa área, e nesse processo muitos bichos de pequeno porte estão no caminho da obra. Nosso papel é resgatar esses animais, mitigando os impactos do projeto”. Ainda de acordo com ele, o monitoramento é feito através de 37 pontos ao longo dos canais, onde são observadas quais espécies estão migrando por causa da transposição. “Monitoramos todas as espécies que estão saindo e indo pra outra bacia e também analisamos o seu material genético, para observar se, no futuro, a diversidade genética desses animais aumenta”, relata.
Além disso, de acordo com o Ministério da Integração, em uma região onde a água é um fator limitante e exerce controle importante sobre a sazonalidade da fauna e da flora, redirecionar parte do fluxo d’água do rio São Francisco para regiões críticas pode gerar as mais diversas modificações no ecossistema local. “Com os reservatórios pode haver deslocamento de espécies de animais para beber água e esses bichos vão ficar expostos à caça, o que pode agravar os riscos de extinção dessas espécies,” explica Pereira.
Revitalizar é preciso – O estado atual do Rio São Francisco é preocupante e revela o descaso da população com um de seus bens mais preciosos. Poluição urbana, devastação da mata ciliar, assoreamento e a má gestão dos múltiplos usos de suas águas são alguns exemplos dos impactos ambientais causados, sobretudo, pela ação humana.
O termo “revitalização” corresponde à recuperação ambiental de áreas degradadas, a preservação de ecossistemas e a promoção do desenvolvimento sociocultural das populações que ali vivem. O Ministério da Integração Nacional desenvolveu um Programa com esse objetivo em relatório de impacto ambiental em função da transposição das águas do rio.
Pesquisadores da comunidade científica buscam comprovar aquilo que já vem sendo dito há muito tempo por aqueles que dependem do rio e dele tiram o seu sustento, como os pescadores. O pescador Moisés da Silva afirma que muitas espécies de peixes não são mais encontradas no rio. “É bem difícil. Tem dia que a gente pega mais, dia que a gente pega menos peixes. Hoje, tem muito menos do que antes”, conta triste com a atual situação.
As mudanças ambientais no ecossistema do rio demandam uma série de ações a longo prazo, que possam gerar mudanças em larga escala. Atento a esses problemas, o Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF) defende a revitalização do Velho Chico. O órgão se divide em quatro Câmaras Consultivas Regionais (CCRs) que correspondem às quatro regiões fisiográficas do São Francisco: alto, médio, submédio e baixo.
Localizada na região do Submédio, Petrolina conta com uma sede do Comitê. De acordo com o coordenador do CCR Submédio e também Reitor da Universidade do Vale do São Francisco, Julianeli Tolentino de Lima, o colegiado tem dialogado com as comunidades da região. Pescadores, associações de transportadores fluviais, irrigantes e pessoas da indústria e comércio participam diretamente da gestão, identificando problemas e situações que visam a melhoria das condições ambientais relacionadas ao rio.
Ações de revitalização executadas pelo Comitê como a proteção de nascentes e de áreas de preservação têm sido realizadas. Julianelli afirma que são desenvolvidos projetos de recomposição da mata ciliar, com plantio de espécies nativas e obras de saneamento, não só no polo Juazeiro e Petrolina, mas em toda área de abrangência do comitê. Em diversos pontos da bacia, são implantados projetos de recuperação hidroambiental, a exemplo da Bacia do Rio Salitre, em Morro do Chapéu, na Bahia, com recursos financeiros provenientes da cobrança pela captação de água do rio, repassado pela Agência Nacional de Águas (ANA).
Talvez o problema mais visível encontrado no rio, a poluição das margens e o esgoto jogado in natura revelam a precarização do saneamento básico na região. Petrolina já é conhecida por ter parte de seu esgoto lançado diretamente no rio, mas isso também pode ser visto em Juazeiro. Estudantes do curso de Jornalismo em Multimeios, da Universidade do Estado da Bahia, denunciaram a degradação na cidade baiana através de um curta-metragem na disciplina Tópicos Especiais em Comunicação.
[Confira o curta Pode Morrer]
As ações de saneamento têm sido cobradas por toda a sociedade local. A falta de políticas públicas fundamentais à garantia de higiene e saúde da população já chama a atenção das prefeituras, que prometem dar prioridade à problemática. A Lei Nacional de Saneamento Básico, nº 11.445/2007, determina que sejam efetivados ações para implantar serviços públicos de abastecimento de água, esgotamento sanitário, drenagem e manejo de águas pluviais, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos. “O Comitê lança anualmente chamadas públicas onde os municípios, através das prefeituras, podem concorrer para que os projetos de saneamento sejam executados no município, contribuindo para a preservação do rio e evitando alguns danos, como o lançamento de esgotos às margens do São Francisco”, explica Julianelli.
De acordo com o CBHSF, seis municípios da região do Submédio receberam ou recebem investimentos em saneamento básico: Pesqueira, Flores e Afogados da Ingazeira, em Pernambuco; e Jacobina, Miguel Calmon e Mirangaba, na Bahia.
Apesar dos avanços a passos lentos, é preciso reconhecer que ainda há muito a ser feito. Mesmo com o cenário desfavorável, discutir os impactos ambientais e implantar soluções para os problemas é mais do que necessário para manter a esperança de que, mesmo em situações adversas, o rio sobreviva.
*Estagiário da Agência de Notícias Multiciência. Projeto desenvolvido na disciplina Estágio Supervisionado II, do curso de Jornalismo em Multimeios – UNEB.