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Atualizado em 12 DE julho DE 2024 ás 12:30

Racismo Ambiental: Quem tem medo da chuva?

A AGN ouviu pessoas afetadas e especialistas sobre o conceito e impactos do racismo ambiental

Por Andresa Correa, Leo Prado, Manoela Santos, Mayana Martins e Uelton Fael

Foto: Site Edgar Digital Ufba

Foto: Site Edgar Digital UFBA

“Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados de pranto balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho da chuva… Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da natureza. Chovia, chorava!” – Olhos d’água, Conceição Evaristo

A relação cultural com a chuva pode dizer muito sobre a situação de fragilidade de uma comunidade, fenômeno esse que reforça e evidencia as desigualdades dessas populações. Nesse contexto, o racismo ambiental se revela um agravador da condição de inúmeras famílias e pessoas pelo Brasil. Nos últimos anos, em Salvador, as fortes chuvas causaram danos severos em comunidades de maioria populacional preta e pobre, que se veem mais expostas aos seus impactos. O problema torna-se ainda maior quando combinado com a ascensão das emergências climáticas que afetam o planeta.

O termo racismo ambiental foi originado na década de 1980 pelo Dr. Benjamin Franklin Chavis Jr., químico e líder dos movimentos de direitos civis dos negros nos Estados Unidos, durante protestos contra depósitos de resíduos tóxicos no condado de Warren, na Carolina do Norte, lugar esse habitado majoritariamente por negros/as, que se viam injustiçados com o acúmulo de lixo em sua região.

O conceito tornou-se um campo de estudo que visa explicar porque populações pobres e de maioria preta são prejudicadas e excluídas. O racismo ambiental pode ser entendido como um estudo do ambiente, da maneira que é manipulado e construído, de como a cidade é feita e pensada para potencializar o racismo estrutural. Os avanços da cidade e os investimentos em infraestrutura não alcançam de forma homogênea todos os bairros. Muitos permanecem sem saneamento básico, áreas verdes, rede integrada de mobilidade urbana etc. Apesar da organização dos moradores e do apoio técnico oferecido por ONGs e coletivos, as necessidades dessa parcela da população não são plenamente atendidas. O racismo ambiental acontece em todas essas etapas, desde a tentativa de implantação de um depósito de resíduos tóxicos em uma região já habitada nos EUA, até a dificuldade para entrar e sair do seu próprio bairro em Salvador.

A Agência de Notícias entrevistou o ativista climático Marcelo Rocha, que nos explicou sobre essa definição. Natural de Mauá, cidade do ABC paulista, ele é fundador do Instituto Ayika, organização que atua na intersecção entre raça, clima, gênero e território: “[O racismo ambiental] parte muito de um conceito dessa supremacia branca de subjugar tudo aquilo que não é essa humanidade branca. É a partir desse momento que esse mesmo homem branco descarta a humanidade da pessoa preta. [...] Parte da colonialidade, da exclusão e do processo estrutural das questões de raça”.

Para Rocha, entretanto, o termo ainda não é devidamente divulgado e carece de um entendimento amplo. “As pessoas não conseguem identificar [casos de racismo ambiental], porque a  deseducação é uma violência”, disse. Segundo ele, a culpa dos eventos que cercam o problema é posta sobre os próprios afetados, devido ao preconceito enraizado. “A gente é educado a entender que o problema é da comunidade, que o problema é das pessoas que estão ali, então isso vai afastando as pessoas do entendimento completo das questões”, concluiu.

O ativista também falou sobre os processos de agravamento das emergências climáticas, que se tratam de grandes transformações no clima que acarretam em consequências globais para o meio ambiente. O impacto causado pelas emergências cresceu exponencialmente em todo mundo, o que intensificou a vulnerabilidade de vítimas do racismo ambiental devido aos desastres naturais, grandes tempestades e outros episódios. Segundo ele, a falta de um planejamento urbanístico torna precária a situação de comunidades e áreas carentes, e faz dos eventos extremos ainda mais perigosos. “A questão do racismo é de tamanha ignorância [...] porque ele não consegue perceber que, se não construir uma cidade para todos, a cidade não é para ninguém.”

Morando em Mauá, ele também conta que as experiências vividas na infância e adolescência o influenciaram a atuar no ativismo. Marcelo diz que, ao longo dos anos, viu sua cidade ser tomada por indústrias e perder sua reserva natural, causando doenças respiratórias na população devido aos resíduos atmosféricos. “Essa cidade é formada por pessoas pretas, a maioria vinda do nordeste brasileiro, como a minha família, que veio do Piauí fugindo da época da seca”, compartilhou.

Experiências pessoais e a relação com a cidade de Salvador

Jilvana Ferreira, pesquisadora e geógrafa que atua no contexto do racismo ambiental, também foi influenciada por experiências pessoais. Baiana e de descendência afroindígena, seu trabalho é focado nas chuvas em Salvador. Ela é mestranda em Estudos Ambientais e Análise do Território pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e integrante do grupo de pesquisa Colapso. Em entrevista à AGN, contou sobre episódios de alagamentos que enfrentou em uma residência universitária.

Jilvana relata que quando entrou na UFBA como cotista, foi alocada no quarto “destinado aos estudantes pobres” da moradia. O local, que estava em situação precária, sofria com severos alagamentos nos períodos de chuva. “Era sempre um pânico quando chovia. Nós não dormíamos. A partir daí, eu comecei a ter um pouco de trauma da chuva. [...] A casa estava num processo de abandono. Uma casa cheia de pretos e gays no Corredor da Vitória”, analisou. Ela ainda compara com o diferente olhar que tinha sobre a chuva quando morava no interior da Bahia, em Senhor do Bonfim, sua cidade natal: “A relação que eu tinha com a chuva era de alegria, porque lá é uma região quase semiárida. Quando chovia era festa”.

A pesquisadora também falou sobre a importância e dificuldade do papel dos grupos e lideranças comunitárias na busca de resoluções: “É um papel de cobrança pela atuação do poder público. [...] Ter que estar, ao mesmo tempo, fazendo seu corre do dia e se mobilizando é bem complicado”. Para ela, a atuação de órgãos públicos ainda é insuficiente perante os problemas causados pela chuva. “71% das causas de mortes por deslizamento em Salvador são resultado de fatores como problemas de contenção de encostas, precariedade de habitações e saneamento básico. São questões resolvíveis. São questões que poderiam ser realizadas, mas o Estado não tem interesse em resolver”, denunciou.

Em entrevista, Sosthenes Macedo, diretor geral da Defesa Civil de Salvador (Codesal), contou à AGN o trabalho feito pelo órgão. Ele explicou que todas as áreas de risco possuem um sistema de alarme contra deslizamentos. Há 147 sensores na cidade e as sirenes são acionadas a partir da contagem de 150mm em até 2 horas. Através do SMS 40199, a população é informada sobre as mudanças de nível da água. Na crescente, os moradores devem se dirigir a abrigos provisórios em escolas próximas.

Macedo explicou que a Codesal realiza simulados de evacuação, e que o trabalho de monitoramento da Defesa se dá “24h por dia, não só quando chove.” E que, em qualquer momento, a população deve solicitar vistorias através de ligações pelo 199. O diretor afirmou que elas são realizadas quando sinalizadas e, segundo ele, independente da condição socioeconômica da área.

Nova República: há um muro no meio do caminho

Dona Vera Lúcia, líder comunitária e presidente da Associação de Moradores da Nova República, localizada no bairro de Santa Cruz, no Nordeste de Amaralina, em Salvador, compartilhou em entrevista à AGN. “[Nós] estamos [indo] aos poucos, né? Eu já estou perto de me aposentar porque eu já estou cansada”. A comunidade, historicamente negligenciada pela gestão pública, enfrenta dificuldades por conta de sua localização, da violência e das áreas de risco.

De acordo com ela, os habitantes de Nova República realizavam um caminho rápido pelo Parque da Cidade para chegar ao ponto de ônibus mais próximo. Em 2000, o poder público construiu um muro que separa a comunidade do Parque, apelidado de “Muro da Vergonha” pelos moradores. Ainda que o antigo trajeto fosse longo, após a construção do muro, a situação ficou ainda pior. Diariamente, eles têm que lidar com o isolamento e a insegurança, pois além da grande distância, existe a falta de segurança durante o deslocamento.

A Associação trabalha promovendo ações de educação e projetos sociais para os moradores, criados para ajudar pessoas em vulnerabilidade social, distribuindo lanches e cestas básicas quando conseguem parceria. “O nosso foco é ajudar mais as pessoas que estão precisando de uma cesta básica, precisando de um médico. [...] E a gente não tem condições de fazer mais do que isso”, declarou Dona Vera.

De acordo com o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população do Nordeste de Amaralina tem o total de 21.887 habitantes, sendo 49,13% autodeclarada parda e 39,15% autodeclarada preta. 54,42% é do sexo feminino.

Com os dados retirados do Dossiê Encosta, feito pelo Coletivo Escalar, em Nova República, a maioria dos/as moradores/as é do sexo feminino (57,4%) e negra, somando-se pretos/as e pardos/as, 98,1%. 56,3% das famílias tem renda mensal de 0-1 salário mínimo; 76,9% dos/as moradores/as dizem que não possuem drenagem de água da chuva, e a alta umidade contribui para a ploriferação de mofo e bactérias; 52,9% dos habitantes dizem que existem problemas com a estrutura da casa.

A encosta

Em 2018, a Associação de Moradores de Nova República entrou em contato com a Defesa Civil de Salvador (Codesal) para alertar sobre uma denúncia que havia recebido de moradores/as preocupados/as com uma encosta que estaria apresentando riscos de ceder. Desde então, a Associação está articulada junto ao Coletivo Escalar em busca de soluções.

O Coletivo Escalar é um grupo que presta assessoria técnica de arquitetura, urbanismo e geografia, atuando com grupos organizados, desde associações de moradores a movimentos sociais. Essa iniciativa surgiu dentro da UFBA e hoje atende às comunidades de Salvador.

Em 2019, o Coletivo, junto a Associação de Moradores/as, formalizou o Grupo de Ação da Encosta da Nova República, para estudar e entender as demandas e as vulnerabilidades dos/as moradores/as, qual era a real situação do local e o que poderia ser feito para melhorar ou resolver o risco da comunidade. “Desde 2020 a gente entrou juntamente com a associação de moradores com uma ação civil pública no Ministério Público da Bahia para conseguir a elaboração de um projeto de construção de uma contenção no local”, conta Luíza Gusmão, integrante do Coletivo desde a graduação em arquitetura na UFBA. A comunidade não possui um sistema de sirenes para casos emergenciais, como nos foi relatado.

Entramos em contato com a Secretaria de Infraestrutura de Salvador (SEINFRA) e não tivemos uma resposta sobre como estaria o processo de solicitação de vistoria e contenção até o fechamento desta reportagem.

Quanto à região, o diretor da Codesal explicou que o Nordeste de Amaralina não se enquadra como uma área de risco geológico, mas que contém pontos de risco, com a presença de geomantas instaladas, formadas por um composto de PVC e geotêxtil com cobertura de argamassa jateada, que impede a água de permear o solo e provocar deslizamentos. Segundo ele, o que se observa são construções de risco irregulares, como o exemplo dado de casas construídas em cima de canais (hidráulicos), que tiveram o afundamento como consequência. A Defesa, durante as vistorias, informa ao morador, mas Sosthenes afirma que “o risco construtivo é privado”.

O caminho para chegar à justiça ambiental é longo e passa por várias discussões complexas da sociedade. É de extrema importância que esse conceito alcance as pessoas afetadas e desperte a atenção da população como um todo. Como explica Marcelo Rocha, “existem vários caminhos. Um primeiro, muito importante, é a educação. Ela está na base da construção dessa nova sociedade. A educação está na base da construção desse futuro”.

*Revisado por: Annandra Lís, Cinthia Maria, Larissa Lima, Nádia Conceição, Nauan Sacramento e Nathalí Brasileiro

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