Algumas ponderações sobre a face elitizada da pandemia, trazida para o Brasil por pessoas de classe média e alta, e sobre diferentes pesos e medidas nas responsabilizações por imprudências deliberadas
POR JOANA BRANDÃO*
joanabrandao@hotmail.com
No começo de março, meu pai, que é médico de coração duplamente – porque é cardiologista e porque ama a medicina, me disse que tinha se casado com uma mulher muito chata que lhe causava insônia todas as noites desde janeiro. Eu já estava me perguntando porque alguém casaria com uma pessoa assim quando ele me disse que sua nova companheira se chamava Corona.
É isso mesmo, consoante com o serviço de inteligência militar brasileiro, meu pai estava preocupado com o coronavírus desde o início do surto na China. “Um vírus que fica 14 dias sendo transmitido sem nenhum sintoma é incontrolável”, dizia na sua poltrona com o controle remoto na mão ligado nos jornais nacionais em que apareciam aquelas cenas de chineses com roupas espaciais e um hospital sendo construído em 10 dias. Aqui no Brasil, mais de um mês depois do primeiro caso confirmado, sequer existe uma portaria do Ministério da Saúde sobre como notificar casos suspeitos e confirmados da doença. Segundo reportagem do jornal Folha de São Paulo, de 02 de abril, municípios e estados seguem protocolos locais, causando incerteza nos dados e possível imensa subnotificação.
Voltando à minha nova madrasta, tem uma coisa que meu pai esqueceu de dizer sobre ela: que a Sra. Corona era uma senhora rica. Só para citar alguns de seus amigos ilustres pelo mundo afora, falemos do primeiro-ministro e do príncipe da Inglaterra, da prima do rei da Espanha, do presidente do Banco Santander de Portugal, do príncipe de Mônaco e do arquiduque de Áustria. Ela também foi apresentada à chanceler da Alemanha, mas ao que tudo indica a amizade não vingou. Já a rainha da Inglaterra chegou a fazer o quinto pronunciamento em 68 anos de reinado devido à presença da Sra. Corona em suas terras.
No Brasil, sabemos que foi convidada de honra em dois casamentos ilustres: o de uma socialite no resort de luxo na Bahia e de um príncipe brasileiro. É, assim como você, eu também não sabia que havia realeza no Brasil republicano. E não há. Ele é brasileiro mas é príncipe mesmo da França. Aqui está uma crônica à parte sobre o que faz a monarquia no século XXI no Rio de Janeiro. Como se isso tudo não fosse ostentação o suficiente, a digníssima Sra. Corona é intima da comitiva presidencial brasileira nas terras do Mickey Mouse – 24 membros ao todo.
O interessante disso tudo é que teve xenofobia contra chineses em diversos países quando a doença surgiu na China, mas depois que o epicentro do surto mudou para Europa e Estados Unidos, ninguém ficou com aversão a europeus ou estadunidenses. Estamos todos solidários com as varandas da Itália e responsabilizando a China pela pandemia quando especialistas apontam que a dimensão do surto nos Estados Unidos, por exemplo, foi uma consequência de uma falha de inteligência do governo deste país. Dois pesos, duas medidas. E a gente não vai ver ninguém responsabilizar a elite que trouxe a doença para o nosso quintal pela crise que vem aí com o país parado sabe-se lá por quantos meses. Ironias à parte, já que a responsabilidade criminal só cabe a quem deliberadamente descumpre medida legal para prevenir disseminação de doença contagiosa, o que ao que tudo indica não aconteceu nos exemplos acima.
Já no caso da corona-comitiva do empresário cearense, presidente de uma financeira em São Paulo que, após ser diagnosticado com a doença, viajou com seus oito amigos de corona-jato para Trancoso curtir o calor e a brisa da Bahia e deixar uns corona-brindes para população local, houve irresponsabilidade deliberada. O governador da Bahia até levantou processo criminal contra o coronadíssimo cidadão. E o caso do governo que ignorou o próprio relatório da inteligência militar alertando o que estava por vir, entre mortes e crise, e continua ignorando? Bem, contra esse não sei quem vai levantar processo.
De volta à greengolândia. Nos nove meses que morei em Nova York, o clima variou entre duas semanas de calor insuportável, para ficando frio, muito frio e deixando de ficar frio. Entende-se ficando frio por se acostumar a 0 graus Celsius; muito frio por comemorar quando estiver 0 graus; e deixando de ficar frio por comemorar entusiasticamente 7 graus e lembrar com certa nostalgia e alívio dos 0 graus.
Neste clima propício para derrubar sistemas imunológicos, aliado aos metrôs abundantes em vírus e bactérias, minha filha precisava de visitas mensais à clínica do bairro que, quando muito, tinha duas pessoas esperando em suas cadeiras hiper confortáveis e hiper higienizadas. Médicos e assistentes sempre usando máscaras. Geralmente em 15 minutos preenchíamos a ficha, fazíamos a pesagem, medíamos a altura, éramos atendidas pelo médico geralmente bem jovem, minha filha fazia o teste para gripe e para bactérias (com coleta de saliva ou secreção nasal) e saíamos de lá receitadas e com atestado em mãos. Mal dava para descansar da caminhada, ler as revistinhas e chupar os pirulitos da cestinha na bancada.
Fico imaginando que se esse sistema de saúde está em estado de colapso, tendo que escolher quem vai ter acesso a ventilador pulmonar e quem vai morrer, mesmo com condições de se recuperar caso pudesse usar o aparelho, e pirateando máscaras da China, o que será do nosso SUS quando a senhora Corona de fato deixar seu círculo de amizade ilustre e alcançar para valer nossas periferias urbanas, terras indígenas e áreas rurais. Pois embora convidada pelos “corona-ricos”, ela é muito eficaz em networking transcultural e atravessar fronteiras sociais.
Então, se, por acaso, você está na quarentena em uma cidade que tem um ou nenhum caso confirmado, e não sabe muito bem o sentido de se trancafiar em casa, eu lhe digo: você está adiando o fim do mundo. Em outras palavras, você está adiando o colapso do sistema de saúde que, para quem vai precisar dele, será como um fim do mundo. E, quem sabe, com todos nós adiando o fim do mundo juntos, ele nunca chegue. Ou chegue devagar, como disse nosso Ministro da Saúde, e a gente consiga segurar nas paredes de nosso bonde enquanto descemos pelo desfiladeiro.
*Joana Brandão é jornalista, cineasta e educadora. Sempre sonhou em vivenciar um momento histórico importante para humanidade. Só não pensou que seria agora e trancada na própria casa. Escreve a coluna “Crônicas do fim do mundo” para a Ciência e Cultura sobre implicações socioculturais da pandemia global pelo Covid-19.
Olá Joana, muito pertinente seu texto. O interessante é que ao ler sua crônica cada palavra me parecia familiar, como se eu tivesse feito parte da construção dessas ideias… A sra Corona se apresentou, mas ela, protagonista do espetáculo deseja conhecer de perto essa grande plateia…