Instituições sem fins lucrativos no estado atuam pelo resgate e promoção de memórias ao longo das gerações
Melissa Carlos
O saber-fazer manual carrega consigo os costumes, vivências e histórias daqueles que o praticam e, quando passado de mão em mão, é capaz de manter vivas memórias geracionais. A Bahia busca preservar esse legado, sendo o segundo estado com maior número de artesãos ativos cadastrados, por dados do Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (SICAB). Com diversos modos de bordar, tecer, esculpir e trançar, a cultura ancestral baiana é continuada por meio das famílias, iniciativas governamentais e associações de artesãos.
Em meio ao ouricuri e à maré, a Associação de Artesãos do Município de Saubara mantém viva a cultura local há mais de 35 anos. Durante uma visita à cidade, é possível notar a presença de diversos pontos de venda de artesanato, sinal concreto da potência simbólica e econômica que a prática exerce na vida comunitária. Em 1982, deu-se início a um grupo de mulheres rendeiras sob a coordenação da atual Mestra Maria do Carmo Amorim na chamada Casa das Rendeiras. Em 1999, por meio de uma iniciativa do Sebrae com o Programa de Sistematização do Artesanato, o espaço passou a sediar a Associação de Artesãos de Saubara, unificando os saberes da renda de bilro com o trançado da palha — joias do artesanato municipal.
“Mudou muita coisa. Muita coisa mesmo, porque, quando era grupo, a gente não saía daqui para lugar nenhum. Quando virou associação, nós tínhamos o CNPJ. Isso facilitou os convites, a compra de matéria-prima, e o pessoal foi se interessando pelo nosso trabalho”, disse a mestra Maria do Carmo, em entrevista à AGN, sobre as mudanças após a formalização da instituição.
As associações são instrumentos importantes para direcionar políticas públicas de fomento e valorização do saber artesanal no estado, especialmente em territórios que aliam a preservação de recursos naturais à manutenção de tradições culturais. Segundo dados das Organizações da Sociedade Civil (OSC), 272 associações de artesanato foram registradas na Bahia até 2020, sendo 69 delas compostas exclusivamente por mulheres.
O portal Artesanato na Bahia, fruto de uma parceria entre a Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (SETRE), a Coordenação de Fomento ao Artesanato (CFA) e a Associação Fábrica Cultural, estabelece 20 rotas do artesanato baiano. Essas rotas são organizadas com base nos Territórios de Identidade e nas principais técnicas manuais de cada área. Uma delas é a Rota D. Cadu, da qual fazem parte os municípios de Saubara e Cachoeira.
Em Cachoeira, o tecido de chita é o elemento central do artesanato desde o período colonial. Com cores vibrantes e estampas florais, a chita se tornou símbolo da expressão cultural local, marcando presença em manifestações como o Bumba Meu Boi, a Trança-Fita, o Samba de Roda — originado em Cachoeira — e a Festa d’Ajuda. Nessa última, figuras como as cabeçorras e os mandus são, em sua maioria, confeccionadas com chita, especialmente no município.
“A importância da chita não é só para a comunidade de Cachoeira, mas para o nosso estado, nossa nação. Ela chega no período colonial e, desde então, faz parte da nossa memória, da nossa história, da nossa identidade nacional. A chita se espalhou por todo o país. Não tem quem não goste da chita. Ela transmite alegria com seus tecidos tropicais e floridos”, disse Bárbara Nunes de Santana, Mestra artesã da Associação Chitarte, situada em Cachoeira.
Em Saubara, a renda de bilro e o trançado de palha do ouricuri são cultivados há gerações por mulheres que dividem sua rotina entre a mariscagem e o trabalho artesanal. Para elas, o artesanato não é apenas produção manual — é também legado afetivo e forma de resistência. “Aqui, toda artesã é marisqueira. A gente vai para a maré e depois vai fazer renda. Era assim que a gente era criado, vendo nossas mães fazendo renda e ensinando para a gente. Minha avó já fazia, minha bisavó também, e minha mãe passou para mim”, contou Maria do Carmo.
Atualmente, para que as políticas públicas alcancem os artesãos, é necessário o cadastro no SICAB e a emissão da Carteira Nacional do Artesão, instrumento que possibilita a identificação e o apoio federal aos trabalhadores do setor. Vale lembrar que, na Bahia, o artesanato é vinculado à Secretaria do Trabalho, e não à de Cultura.
“O nosso trabalho aqui é o de qualificar o Estado para assegurar aos artesãos ferramentas como cursos de design, fotografia, técnicas de venda e de precificação”, explica Weslen Moreira, coordenador da CFA. Uma das ações promovidas pelo órgão é o encontro entre associações, pensado por conta das dificuldades burocráticas que essas instituições enfrentam. Já na área de promoção e comercialização, são realizadas feiras em pontos estratégicos e participação em eventos fora da Bahia.
Para Bárbara Nunes, da Chitarte, ainda é preciso avançar. “A gente tem uma grande política pública quando se fala em capacitação. Hoje, existe uma escola online, criada pela Fábrica Cultural, em parceria com a CFA. Mas ainda faltam espaços para comercialização. Existe a Loja do Artesanato da Bahia, onde as peças passam por curadoria, o que já representa um avanço. Mas, como gestora de política pública e ativista do artesanato, reconhecida como mestra pelo Programa do Artesanato Brasileiro, eu quero mais.”
Já em Saubara, o maior desafio relatado por Maria do Carmo ainda é o mercado. “O mercado caiu muito. Depois da pandemia, agora é que está começando a melhorar. A gente passou por uma situação muito difícil.”
Outro entrave para a continuação dos saberes tradicionais é a obtenção da matéria-prima, que por vezes é uma prática desgastante para os artesãos. “Minha bisavó, minha avó, meu pai, minha mãe, todos faziam isso (trançado de palha). E eu aprendi e faço até hoje. Um monte de gente deixou de fazer porque está difícil conseguir a palha. Antigamente, a gente mesmo colhia. Agora, tem lugar onde não pode mais tirar. É trabalhoso. Tem que secar ao sol, guardar… nem todo mundo quer. Tá difícil manter”, relatou a mestra Raimunda Alexandria, líder da parte de trançado de palha.
Por isso, tanto em Saubara quanto em Cachoeira, as associações investem no ensino das técnicas às crianças da região, que não se mostram tão interessadas nas práticas quanto as gerações anteriores. Na Casa das Rendeiras, cursos de renda e trançado são ofertados desde a fundação da associação. No entanto, atrair os jovens tem sido um desafio. “Eu já dei aula para 30 meninas. Eram 15 de manhã e 15 de tarde. E agora? Tô querendo 10 e não tô conseguindo”, diz Maria do Carmo.
Já a Chitarte atua diretamente com comunidades quilombolas da região, e parece ter uma visão mais otimista quanto ao futuro do artesanato. Por meio de parceria com o Movimento Juventude, do Instituto Localiza, a associação promove oficinas de técnicas artesanais em escola da Comunidade Quilombola de Opalma. “Tivemos uma grande procura, principalmente das comunidades rurais e quilombolas, pois a maioria dos jovens vem de lá. Como somos um grupo que luta pelo fazer local, pelo fazer cultural, não queremos que esses jovens percam sua cultura de origem. Que adquiram novos saberes, mas que não abandonem os nossos”, destaca Bárbara.
Para Maria do Carmo, o segredo da permanência do artesanato está na alma de quem o faz: “É um trabalho que requer muita ciência, muita paciência e muito amor. E por isso ele prevalece.”