Agremiação tem como um dos objetivos, cultivar e difundir uma cultura de C&T no estado da Bahia
Amilcar Baiardi*
amilcar.baiardi@terra.com.br
Na história das ciências a primeira academia foi a de Platão, que funcionava como escola superior, uma espécie de proto-universidade, que instituiu a produção coletiva do saber e a avaliação interpares. Antes dela há registro de associações de filósofos como a comunidade de Pitágoras e a escola Jônica de Thales de Mileto, mas nem a primeira, pelo seu caráter místico, e nem a segunda, por ser mais uma agregação em torno de crenças, chegaram a se organizar como centro de produção do saber. A Academia de Platão jogou um papel fundamental por superar o paradigma dominante de produção intelectual individual, na forma de tratados, que se propunham a abarcar todos os conhecimentos ou formas de saber.
O nome Academia se deve à localização no jardim ou parque Akademos ou Hekademos, cuja designação homenageava um herói ático. Havia também neste parque, ginásios para a prática de esportes. O próprio Platão praticava a luta e chegou a ser premiado nos Jogos Ístmicos. Após a Academia de Platão e durante a Antiguidade Clássica, mais duas experiências de associativismo de filósofos adquiriram fama: o Liceu de Aristóteles – Lyceum – localizado no bosque em homenagem a Apolo Lykeios, em um subúrbio de Atenas, e a Escola de Alexandria, localizada na cidade do mesmo nome, no Egito, a qual reunia, no mesmo espaço, a biblioteca e o mouseion - ambiente para coleções e experimentos. Ambas organizações combinavam o ensino com a pesquisa, assemelhando-se às universidades modernas. Foram epistemologicamente precursoras da vertente empirista, por valorizarem a percepção física e a experiência.
Um surto de criação de novas academias, a esta altura a denominação já se consagrara, acontece durante o Renascimento, espalhando-se da Península Itálica para o resto da Europa no período da chamada Revolução Científica. As academias renascentistas constituíram uma iniciativa dos filósofos – na ocasião denominando-se “filósofos da natureza” porque se distanciavam da religião e da metafísica – para criar um espaço erudito que se distinguisse das universidades antigas, nas quais predominava a visão de mundo escolástica, fundamentada na tradição aristotélica e inseparável da teologia.
Entre 1560 e 1807 foram criadas cerca de 80 academias, algumas das quais tiveram vida efêmera e outras que existem até hoje. A primeira delas foi a Accademia Secreto rum Naturae, fundada em Napoles, em 1568. Ainda na Itália, tornaram-se famosas duas outras academias. A primeira foi a Accademia dei Lincei, (1600), localizada em Roma, que teve Galileu como membro e como mecenas a família Cesi, pertencente à nobreza. A Academia dos Linces, o que sugeria o nome, destacou-se na produção bibliográfica e tentou convencer o Papa Urbano VIII a inocentar Galileu. A segunda foi a Accademia del Cimento (1657), localizada em Florença e mantida pela corte dos Medici. A Academia da Prova ou do Risco, o que sugeria o nome, foi à primeira publicar artigos decorrentes de pesquisas experimentais na forma de anais, vide imagem.
Fora do território italiano a primeira academia foi a Societas Ereneutica, (1622) em Rostock, Alemanha, e em território do Novo Mundo a primeira foi a Boston Philosophical Society (1683). No século XVII, na pré-modernidade, foram criadas a Royal Society of London for the Improvement of Natural Knowledge, (1662) a Royal Society, e a Académie Royale des Sciences (1666), a Academia Real Francesa. Embora contemporâneas, tinham um escopo e uma composição bem diferentes. A Royal Society era uma típica iniciativa da sociedade civil, criada por filósofos da natureza, mas com 40% de seus membros sendo homens de negócio.
A Royal Society não recebia apoio governamental regular na forma de orçamentos, mas sim doações da corte. A Académie Royale, por seu lado, era uma típica organização estatal, composta exclusivamente de filósofos da natureza que eram remunerados, restaurando uma tradição que havia na Alexandria, pagar com salários pesquisadores. Enquanto a Royal Society fomentava a cultura de ciência e financiava pesquisadores independentes a Académie Royale, que funcionava em dependências do palácio real era, ao mesmo tempo, centro de pesquisa e agência de controle da propriedade intelectual e da normatização metrológica, vide imagem.
Presentemente, com enorme prestígio como academias nacionais tem-se a US National Academy of Sciences (NAS), e a Royal Society. Embora resultantes da mesma cultura, a NAS e a Royal Society, separadas por dois séculos quanto à gênese, tiveram diferentes concepções. A NAS, igualmente a outras academias nacionais, foi criada em 1863, patrocinada pelo Presidente Abraham Lincoln, durante a Guerra Civil Norte Americana. Uma ação típica de governo, embora contasse com mecenas privados. A Royal Society, por sua vez, foi obra de filósofos da natureza[1] e se consolidou na gestão de Isaac Newton, embora tenha recebido generoso apoio do rei Charles II. A independência do Estado, no caso da Royal Society, era tão marcante que a entidade convidou Benjamin Franklin para debater em seu ambiente a forma dos condutores de luz, mesmo sabendo que Franklin fomentava a rebelião das colônias inglesas.
A NAS, localizada em Washington DC, tem cerca de 1.100 servidores de tempo integral e anualmente gera aproximadamente 200 relatórios para o Governo Federal. Tem um status de órgão quase-governamental, mas é bastante transparente para a sociedade, mais até que a Royal Society, entidade não governamental. A NAS é para os Estados Unidos, guardadas as proporções, o que a CGEE, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, é para o Brasil.
Durante a vigência do denominado socialismo real, expressão cunhada pela Escola de Frankfurt, as academias de ciência criadas nos países que o adotaram, eram parte efetiva do Estado e se responsabilizavam por programas nacionais de pesquisa. Academias de países ex-socialistas e a Academia Chinesa de Ciências continuam tendo esta concepção.
Um outro modelo contemporâneo de academia de ciências é o da Academy of Sciences for the Developing World, TWAS, localizada em Trieste, Itália nas instalações do International Centre for Theoretical Physics, que opera sob um acordo tripartite entre o Governo Italiano, a Agência Internacional de Energia Atômica, IAEA, e a United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization (UNESCO). A TWAS tem como missão desenvolver a ciência no Terceiro Mundo e evitar a drenagem de cérebros para os países industrializados. A TWAS provê, sobretudo para países africanos, recursos para infra-estrutura, bolsas, publicações, organizações de eventos, publicações etc.
Na contemporaneidade foram se cristalizando estes e outros papéis das academias de ciência: lócus de pesquisa, agência de fomento a pesquisa, assessoria ao Estado, ente fomentador da cultura de C&T, colegiado destinado a reconhecer méritos e conferir honrarias, lócus de debate e análise para toda a sociedade de temas relevantes (como mudança climática, energia, reprodução biológica e modificação genética), ente promotor de campanhas em favor da educação básica etc. É também função de uma academia científica, na opinião de Bruce Alberts, ex-presidente da NAS, prover o consenso de visões dentro do corpo da comunidade de pesquisadores, embora o mesmo reconheça não ser fácil esta tarefa, diante da ampla diversidade de pontos de vista.
Com maior ou menor participação do Estado, na contemporaneidade e no Ocidente, prevaleceu o modelo de Academia Científica que procura difundir uma cultura de C&T e atua como organização da sociedade civil que controla e subsidia o Estado e a sociedade com propostas de diretrizes e políticas, participação em comissões etc. Este é o caso da Academia Brasileira de Ciências. A Academia de Ciências da Bahia deverá, em alguma medida, se assemelhar à Academia Brasileira de Ciências, atuando como organização da sociedade civil no cultivo e difusão de uma cultura de C&T, no controle social da pesquisa e no subsidio ao Estado e a sociedade civil com propostas de ações e de políticas locais, regionais e nacionais de C&T&I, mas deve ir além, de acordo com o que estabelece de forma detalhada o Artigo 4º de seu Estatuto.
[1] O termo cientista foi cunhado em 1833 por William Whewell
*Professor da Pós-Graduação da Universidade Federal da Bahia em Ensino, Filosofia e História da Ciência, PGEFIHC e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Socias da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
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